Imaginai ,
Imaginai uma comichão ligeira,
estilo picada de mosquito que, de repente, é só uma impressão e, depois de uns
minutos e umas horas, começa a ser um grave problema de fricção entre a nossa
bela unha (ou mesmo belas 5 ou 10, dependendo da intensidade) e a nossa perna,
braço, costas...ai nas costas…mesmo naquele ponto central onde quase não
chegamos e, depois, já nem as 10 unhas são suficientes, porque a nossa
flexibilidade já la vai e só queremos algo pontiagudo que nos safe desta...!
Agora focalizai essa sensação. É
exactamente essa espécie de "pânico" associado ao incomodo geral que
sinto devido a esta coisa de uma pessoa ir mudando de poiso. Esta mania de uma
pessoa ir começando do zero. De começar uma imersão numa cultura (local,
nacional, internacional). De se mandar sozinha para outras línguas maternas,
outro código postal, outro código de país, outras cores de matriculas, outros
cheiros, novas gentes, novas tradições, novas comidas, novas arquitecturas,
novas expressões do dia-a-dia, novos modus operandi, novos amigos... Ai os
novos amigos... São esses. É precisamente quando nos sentimos chamar amigo a
alguém e o sentimos a ele ou a ela a acomodarem-se no nosso coração, e o nosso
coração a acomodar-se a eles, com o conforto de ambas as partes; é quando vem o
momento em que sentimos que exactamente aquela pessoa nunca mais sairá dali, já
nos pertence, o nosso coração já lhe pertence..e presenciamos a espécie de
magia de sentirmos o mesmo com o coração da outra pessoa. Sentimos tal e qual o
mesmo do lado de lá da barricada...
Então, essa sensação de
construção de uma nova amizade-para-a-vida, quando surge a quilómetros da nossa
"chamada" casa, é o sinal para o inicio de um novo tipo de
"problemas " na nossa vida. Exactamente porque esta comichão de se
ter duas casas, três casas, de se ter mais do que um sítio onde sentimos que é
casa, que é o nosso lar-doce-lar; que os cheiros e as gentes e as ementas e os
dizeres e as expressões já nos são intrínsecas, que já nos fazem parte e já
estamos envolvidos nelas até aos ossos. É a sensação que nos faz pesar o
coração quando temos de permanecer mais tempo "parados" numa dessas
"casas". E a comichão aumenta na intensidade quando o sítio em causa
é a primeira casa a que chamámos casa pela primeira vez. A única que
conhecíamos quando aprendemos o conceito associado a palavra "casa".
Quando depois de o nosso coração já ter encontrado um lar noutros sítios que
não o nosso primeiro lar e não estamos bem em casa...porque sentimos saudade de
casa...porque queremos sair de casa e para ir já para casa... Porque nos fazem
falta os outros amigos, aqueles que nos conhecem bem como somos agora, os que
conhecem bem o que de nós temos para lhes dar. E quanto mais nos concentramos
na comichão, mais vontade temos de coçar e só estaremos bem quando pudermos
cortar aquele bocado de pele e deitar fora, para ver se assim passa... Mas
vamos inserindo anti-estamínicos, vamos dando tempo. Vamo-nos distraindo com um
livro, um filme, uma música... esperando não pensar muito nisso. Mas volta a
sensação de quente. E voltamos a querer correr para aquela sala, aquele jardim,
aquele alpendre em casa daquele ou daquela. Queremos só perder-nos no tempo com
palavras salteadas num copo (ou vários) de um bom vinho e voltar a beber
daquela vida que nos bebe a nós, que nos conhece e absorve aquilo que temos
para lhe dar com a mesma vontade que nos dá de absorver...
É, de facto, complicado gerir as
emoções de uma vida em que nos vamos imergindo em novas culturas, em novos
ambientes, em novas populações. Quando temos a sorte de encontrar pessoas com
quem nos identificamos torna-se ainda mais complicado gerir os regressos à
primeira casa que conhecemos como casa, mas que simplesmente deixou de saber a
casa. É então que percebemos que casa mora dentro de nós e é mesmo nessa paz
interior, nesse autoconhecimento e autoconsciência que conseguiremos estar em
sintonia connosco e em casa, sendo indiferente qual delas. Seja na que nos viu
crescer, na do meio de uma praia longínqua ou dentro de um qualquer autocarro
com destino em bué bué longe. A sede
de continuar a beber novas culturas e a curiosidade de encontrar novos amigos (que
já fazem parte da nossa alma antes de o sabermos) aumenta a cada dia que a data
de um novo "arranque" se aproxima. E, no fundo, voltar a casa-casa
traz sempre o sol à resposta, afasta sempre a neblina e devolve-nos a leveza de
que somos feitos.
Afinal, uma picada de mosquito
não passa disso mesmo. Incha, comicha. desincha. E passa.
E estamos prontos para a próxima!