quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Comichices


Imaginai ,

Imaginai uma comichão ligeira, estilo picada de mosquito que, de repente, é só uma impressão e, depois de uns minutos e umas horas, começa a ser um grave problema de fricção entre a nossa bela unha (ou mesmo belas 5 ou 10, dependendo da intensidade) e a nossa perna, braço, costas...ai nas costas…mesmo naquele ponto central onde quase não chegamos e, depois, já nem as 10 unhas são suficientes, porque a nossa flexibilidade já la vai e só queremos algo pontiagudo que nos safe desta...!

Agora focalizai essa sensação. É exactamente essa espécie de "pânico" associado ao incomodo geral que sinto devido a esta coisa de uma pessoa ir mudando de poiso. Esta mania de uma pessoa ir começando do zero. De começar uma imersão numa cultura (local, nacional, internacional). De se mandar sozinha para outras línguas maternas, outro código postal, outro código de país, outras cores de matriculas, outros cheiros, novas gentes, novas tradições, novas comidas, novas arquitecturas, novas expressões do dia-a-dia, novos modus operandi, novos amigos... Ai os novos amigos... São esses. É precisamente quando nos sentimos chamar amigo a alguém e o sentimos a ele ou a ela a acomodarem-se no nosso coração, e o nosso coração a acomodar-se a eles, com o conforto de ambas as partes; é quando vem o momento em que sentimos que exactamente aquela pessoa nunca mais sairá dali, já nos pertence, o nosso coração já lhe pertence..e presenciamos a espécie de magia de sentirmos o mesmo com o coração da outra pessoa. Sentimos tal e qual o mesmo do lado de lá da barricada...
Então, essa sensação de construção de uma nova amizade-para-a-vida, quando surge a quilómetros da nossa "chamada" casa, é o sinal para o inicio de um novo tipo de "problemas " na nossa vida. Exactamente porque esta comichão de se ter duas casas, três casas, de se ter mais do que um sítio onde sentimos que é casa, que é o nosso lar-doce-lar; que os cheiros e as gentes e as ementas e os dizeres e as expressões já nos são intrínsecas, que já nos fazem parte e já estamos envolvidos nelas até aos ossos. É a sensação que nos faz pesar o coração quando temos de permanecer mais tempo "parados" numa dessas "casas". E a comichão aumenta na intensidade quando o sítio em causa é a primeira casa a que chamámos casa pela primeira vez. A única que conhecíamos quando aprendemos o conceito associado a palavra "casa". Quando depois de o nosso coração já ter encontrado um lar noutros sítios que não o nosso primeiro lar e não estamos bem em casa...porque sentimos saudade de casa...porque queremos sair de casa e para ir já para casa... Porque nos fazem falta os outros amigos, aqueles que nos conhecem bem como somos agora, os que conhecem bem o que de nós temos para lhes dar. E quanto mais nos concentramos na comichão, mais vontade temos de coçar e só estaremos bem quando pudermos cortar aquele bocado de pele e deitar fora, para ver se assim passa... Mas vamos inserindo anti-estamínicos, vamos dando tempo. Vamo-nos distraindo com um livro, um filme, uma música... esperando não pensar muito nisso. Mas volta a sensação de quente. E voltamos a querer correr para aquela sala, aquele jardim, aquele alpendre em casa daquele ou daquela. Queremos só perder-nos no tempo com palavras salteadas num copo (ou vários) de um bom vinho e voltar a beber daquela vida que nos bebe a nós, que nos conhece e absorve aquilo que temos para lhe dar com a mesma vontade que nos dá de absorver...

É, de facto, complicado gerir as emoções de uma vida em que nos vamos imergindo em novas culturas, em novos ambientes, em novas populações. Quando temos a sorte de encontrar pessoas com quem nos identificamos torna-se ainda mais complicado gerir os regressos à primeira casa que conhecemos como casa, mas que simplesmente deixou de saber a casa. É então que percebemos que casa mora dentro de nós e é mesmo nessa paz interior, nesse autoconhecimento e autoconsciência que conseguiremos estar em sintonia connosco e em casa, sendo indiferente qual delas. Seja na que nos viu crescer, na do meio de uma praia longínqua ou dentro de um qualquer autocarro com destino em bué bué longe. A sede de continuar a beber novas culturas e a curiosidade de encontrar novos amigos (que já fazem parte da nossa alma antes de o sabermos) aumenta a cada dia que a data de um novo "arranque" se aproxima. E, no fundo, voltar a casa-casa traz sempre o sol à resposta, afasta sempre a neblina e devolve-nos a leveza de que somos feitos.

Afinal, uma picada de mosquito não passa disso mesmo. Incha, comicha. desincha. E passa.

E estamos prontos para a próxima!